Hipóteses legais de aborto e concepções sociais

A sociedade brasileira foi novamente “dividida” no debate envolvendo o Aborto, contudo instada ou seduzida pela notícia de estupro de vulnerável com resultado gravidez de uma criança de 10 anos na cidade de BH. As concepções sociais daí resultante estão em conformidade com a Lei?

O aborto, por constituir matéria complexa, resulta discussões de variadas esferas na sociedade, envolve, pois, Princípios normativos, Direitos e Garantias Fundamentais e Direitos Humanos.

Note-se que, na legislação penal atual, há duas hipóteses de aborto legal, quais sejam: único meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário) e gravidez resultante de estupro (aborto humanitário) (Art. 128 do CPB). Em ambos os casos, o procedimento só é lícito se praticado por médico e, no caso do aborto humanitário, é exigível o consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Ao encontro, o Supremo Tribunal Federal exarou uma terceira hipótese de aborto legal, verificada quando diagnosticada anencefalia no feto, exigindo-se, novamente, o consentimento da gestante. Portanto, o Estado não obriga ou obrigou nenhuma mulher ao ato abortivo. Trata-se de faculdade.

Recentemente, a sociedade brasileira foi novamente “dividida” no debate envolvendo o tema, contudo instada ou seduzida pela notícia de estupro de vulnerável com resultado gravidez de uma criança de 10 (dez) anos na cidade de Belo Horizonte.

Como mencionado, tratar-se-á de direito subjetivo da criança o procedimento abortivo, das uma pela presunção de risco quando do desenvolvimento da gravidez em uma criança de 10 (dez) anos e das duas pelo fato incontroverso de ter sido a vítima sujeito passivo do crime de estupro de vulnerável (Art. 217-A, CPB), eis que é impossível a qualquer menor de 14 (catorze) anos consentir a ato sexual (vide súmula 593 do STJ e §5º do Art. 217-A, CPB).

Em afronta à Lei, ao bom senso e ao mínimo de empatia e humanidade, verificou-se postagens nas redes sociais afirmando ou cogitando o prazer sexual da vítima – uma criança de 10 (dez) anos que engravidou vitimada por estupro de vulnerável.

Vale consignar que, ainda que prosperasse o absurdo de considerar o supracitado prazer sexual da criança, o fato não isentaria a ocorrência do delito (Art. 217-A, CPB). Frisa-se: o crime de estupro de vulnerável é consumado com o ato sexual com menor de 14 (catorze) anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.

Averbe-se, desde logo, que a proibição ao retrocesso impede a exclusão das hipóteses de aborto legal, a saber: (i) o crime de aborto no Brasil e seu contexto histórico; (ii) o anteprojeto 236 e a corrente liberalista do aborto e; (iii) as mudanças

importantes na interpretação legal adicionadas à PEC181 – PEC Cavalo de Tróia – e a corrente conservadora quanto ao aborto.

Atualmente a matéria “aborto” está consignada nos artigos 124 a 128 do Decreto-lei 2.848/40 (crimes contra a vida), trazendo a punição para o autoaborto, o aborto provocado por terceiro sem consentimento da gestante, o aborto provocado por terceiro com consentimento da gestante, forma qualificada.

Destaque-se, por oportuno, que as hipóteses de aborto legal foram expressas do CPB no texto do artigo 128, demonstrando-se claramente que a tutela à vida não é direito absoluto, devendo ser lido a partir do Artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 (vida digna). No mesmo sentido, o Emérito Jurista Mirabete assevera que “Aborto é a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semanas a três meses) ou feto (após três meses), não implicando necessariamente sua expulsão. O produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido pelo organismo da mulher ou até mumificado, ou pode a gestante morrer antes de sua expulsão. Não deixará de haver, no caso, o aborto”.

A natureza dinâmica da vida em sociedade coloca dúvida quanto à razoabilidade da criminalização rigorosa do crime em comento, especialmente por ser imperativo de constitucionalidade fazer a leitura da criminalização, ou não, do aborto a partir da realidade contemporânea da mulher, dos direitos sexuais e, como indica Daniel Sarmento, reprodutivos da mulher e da realidade social contemporânea.

Ao encontro, com uma visão progressista e tomando como o Direito Penal Constitucional, a jurisprudência dos tribunais superiores admitiu outras hipóteses de aborto legal, dentre elas os casos de anencefalia disposta na (ADPF 54-STF).

Averbe-se que em 2016 a 1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal, declarou “não ser crime a prática do aborto durante o primeiro trimestre de gestação, independentemente da motivação da mulher”.

O anteprojeto 236 (novo Código Penal) é também de natureza permissiva, não trazendo, no texto original, punição para o aborto consciente praticado antes do 3º (terceiro) mês de gestação.

Percebe-se, nas atuais disposições (art. 124 a 128 do CPB), no anteprojeto 236 e na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o legislador teve a leitura sistemática do ordenamento jurídico leva ao rigor da leitura do aborto a partir do exercício da dignidade humana da mulher em seus direitos sexuais e reprodutivos.

Lado outro, a Proposta de Emenda Constitucional nº 181 de autoria do Senador mineiro Aécio Neves do PSDB, que tinha em seu escopo o condão humanitário de ampliar o tempo da licença maternidade de mães com filhos prematuros para até 240 (duzentos e quarenta) dias, de acordo com o período de internação da criança, teve dois aditivos, realizados pelo deputado Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP), teratologicamente impactantes.

De acordo com os aditivos, o inciso III do artigo 1º do texto constitucional receberia a frase: “dignidade da pessoa humana desde a concepção”. Já no artigo 5º, acrescentou-se: “a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”.

A exclusão de todas as hipóteses de aborto legal é afronta grave aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher a partir do conceito de vida digna, o que, por força do princípio da vedação ao retrocesso, impede a que a PEC Cavalo de Tróia seja compatível com a Constituição Federal de 1988.

Vale consignar, em generalidade, que empiricamente no Brasil a punição ao aborto é restrita a mulheres pobres. Fica, assim, o questionamento: a normação de natureza penal que guarda eficácia apenas em face de mulheres pobre, negras e estigmatizadas é constitucional?

BIROLI, Flávia, Autonomia e justiça no debate sobre aborto: implicações teóricas e políticas. Revista Brasileira de Ciência Política, nº15. Brasília, setembro – dezembro de 2014, pp. 37-68. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0103-335220141503

CAVALCANTI, Márcio André Lopes. Principais julgados do STF e do STJ comentados 2016.1ª Ed. Manaus. 2016

COHEN, Jean L. , Repensando a privacidade: autonomia, identidade e a controvérsia sobre o aborto. Revista Brasileira de Ciência Política, nº7. Brasília, janeiro – abril de 2012, pp. 165-203

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 24ª ed., 2006, p. 62.

SARMENTO, Daniel – Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional, capítulo 3 Legalização do Aborto e Constituição, pg. 96 . Editora Lumen Juris Ltda, 2006

Graziela Gonçalvez Nascimento
– Professora do Ensino Fundamental e Curso Técnico do Centro de Estudos Superiores Aprendiz – CESA
– Pedagoga
– Especialista em anatomia e patologia 
– Pós-graduanda em Ciências Criminais 

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