Tema recorrente de apreciação nas varas cíveis ao redor do país, o acesso a medicamentos por meio de decisões judiciais tem peculiar relação com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Considerada a saúde um direito social taxado ao teor do artigo 6º da Constituição Federal de 1988 e definida no artigo 196 da mesma carta como direito de todos e dever do Estado nasce o questionamento quanto à viabilidade das decisões judiciais que determinam o fornecimento de medicamentos a contribuintes.
O tema foi debatido em audiência pública (nº 4), convocada pelo Ministro Gilmar Mendes em março de 2009 em virtude dos intensos debates acadêmicos acerca da “Judicialização da Saúde”. O referido ato teve por pauta, conforme asseveram Thana Campos e Vitor Ido, “a responsabilidade dos entes federativos no direito à saúde, fraudes no Sistema Único de Saúde (SUS), fornecimento de prestação de saúde prescrita por médicos fora do quadros do SUS, a obrigação de custear tratamentos fora das políticas públicas existentes e o fornecimento de medicamentos não licitados e sem previsão na lista do SUS”.
A Audiência Pública nº 4 foi um relevante instrumento para dar publicidade ao posicionamento da corte constitucional brasileira que, nada obstante às contribuições de mais de cinqüenta especialistas, sobretudo na área do direito e da medicina, permaneceu inalterado.
Grande parte do estudo, seja com posicionamentos favoráveis ou contrários, envolveu o acesso de medicamentos por medidas judiciais. Criticas severas forma feitas quanto à teoria da reserva do possível, “bem como a idéia de sobreposição de um direito individual à saúde pelo direito coletivo” à tal.
Por todos os termos expostos na Audiência Pública nº 4, a conclusão advinda foi pelo reconhecimento de que o Estado não tem condições de fornecer para todos os brasileiros todos os medicamentos necessários à obtenção do mais alto padrão de completo bem-estar físico, mental e social. Lado outro, houve forte resistência e repúdio às decisões judiciais que não concederam medicamentos, evidenciando a forte tendência do poder judiciário em conceder medicamentos.
Importante frisar, por oportuno, que a ausência de súmula vinculante que trate do tema confirma a falta de uniformização da matéria do acesso de medicamentos em âmbito nacional.
Segundo pesquisa divulgada em artigo por Thana Campos e Vitor Ido, em 91,8% das decisões judiciais proferidas pela Suprema Corte houve deferimento aos requerimentos de medicamentos.
Apesar da tendência, já mencionada, na concessão dos medicamentos pela via judicial pelo Supremo Tribunal Federal, o deferimento não pode e não deve ser irrestrito, sendo teratológico a concessão de pedidos de medicamentos pela via judicial sem a demonstração cabal nos autos da necessidade imperativa de acesso à substância, quanto mais em pleitos cautelares e tutelas de urgência.
Professor Sueli Dallari leciona que “o direito ao medicamento é parte do direito à saúde; é uma parte pequena, certamente. Se saúde é um conceito amplo, igualmente será complexo – e isso é importante que se note. Ao mesmo tempo em que o direito à saúde (…) tem aspectos de direito individual, que privilegiam a liberdade – por exemplo, a prescrição médica -, ele tem, ao mesmo tempo, aspectos que privilegiam o social, que privilegiam o direito à igualdade”.
Nada obstante aos termos mencionados e aos fundamentos do entendimento do Supremo Tribunal Federal, em passagem rápida pela Coordenadoria do departamento Jurídico da Secretaria Municipal de Saúde e Progamas Sociais – SESAPS – de Barbacena/MG tivemos a oportunidade de identificar, dia após dia, a concessão de medicamentos pela via judicial a contribuintes que sequer exauriram a via administrativa. Ou seja, a porcentagem imensa de favorecimento judicial no fornecimento de medicamento leva à imensa judicialização de procedimentos que, possivelmente, seriam deferidos por requerimentos administrativos simples.
Outro fator importante à destacar, para então expor críticas, é o entendimento dos tribunais ao redor do país de que o fornecimento de medicamentos é de responsabilidade solidária de todos os entes políticos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).
Por seus jurídicos e legais fundamentos, as decisões contendo o mérito acima descrito levam à hermenêutica de que o direito à saúde – como dito, com peculiar atenção princípio da dignidade da pessoa humana, mormente ao direito à vida digna – deve prevalecer sobre conflitos de competência entre as pessoas políticas. Assim, existem casos, e não são poucos, da procedência de ações em desfavor de municípios com requerimento de farmácia de alto custo, quando na verdade tal responsabilidade, a depender do caso, seria dos Estados ou, em último caso, da União, nos termos do item 16.1, “g”, da Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde e dos artigos 2º, §1º, 4º e 6º, inciso I, da Lei nº 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes.
Com a crise financeira atual, que indubitavelmente afeta os Municípios em dimensões, a depender, até mesmo maiores que o Estado e a União, fica notório o contrassenso financeiro no fornecimento de fármacos de alto custo pelos Municípios. Noutro giro, nas palavras de Patrícia Bezerra de Medeiros Nascimento e no sentido das decisões do Superior Tribunal de justiça, “nos termos dos artigos 23, inciso II; 196 e 198 da Carta Cidadã, não resta dúvida “ser dever do Estado, solidariamente, com a União o Distrito Federal e os Municípios, prestar assistência farmacológica àqueles que necessitem, a fim de manter a saúde do cidadão”.
Assim, nítido concluir que o direito à saúde e à vida digna fundamentam o deferimento de requerimentos judiciais de fornecimento de medicamentos. A natureza de responsabilidade solidária no fornecimento de fármacos aos contribuintes permite que, independentemente da natureza do medicamento, o Requerente ajuíze ação em desfavor de qualquer dos entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).
Pelo dito, a orientação àqueles que necessitem de medicamentos a serem fornecidos pelo SUS é pela preferência, em um primeiro momento, pelo exaurimento da via administrativa com a solicitação junto ao órgão competente (em regra, a Secretaria Municipal de saúde).
Por derradeiro, o princípio da proporcionalidade/razoabilidade é norteador de toda e qualquer demanda judicial. Assim, sendo indeferido o requerimento administrativo em todas as vias possíveis, fica ao necessitado a possibilidade de ajuizamento de ações judiciais com enorme chance de êxito. Nesse caso, como primado de razoabilidade, cidadania e democracia, a melhor lição é pela escolha correta do pólo passivo (contra quem o requerente vai ajuizar a ação) a partir da natureza do medicamento reivindicado.
Hugo Viol Faria
Graduado em Direito pela Faculdade Metodista Granbery – FMG. Pós-graduando em Ciências Criminais pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva-Estácio. Assessor de Juiz na Vara Criminal de Cataguases/MG. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil Subseção Barbacena/MG. Professor de Direitos Humanos e Prática Penal.