O ano de 2017 começa com um gosto amargo para o combate à discriminação de gênero, isto por que, a título de exemplo, dois atos de violência e intolerância, por homofobia e machismo respectivamente, foram difundidos nos meios de comunicação.
Primeiro, um vendedor ambulante morre após ser espancado na estação Pedro II do Metrô de São Paulo na noite de 25 de dezembro de 2016 (natal). Por volta das 20h, perseguiram um morador de rua homossexual. Neste momento, Luis Carlos Ruas tentou defender a vítima até então, mas – ato contínuo – tornou-se a vítima fatal da noite. Luis, atingido por vários golpes, ficou completamente desfigurado e não resistiu aos ferimentos.
Em segundo lugar, e de forma alguma menos importante, doze pessoas foram mortas, durante uma confraternização de família, em uma verdadeira chacina na virada do ano.
Segundo informações do boletim de ocorrência, o técnico em laboratório na área de ciência e tecnologia, Sidnei Ramis de Araujo, de 46 anos, pulou o muro de uma residência – local onde acontecia a festa de ano novo da família de sua ex-mulher – e efetuou repetitivos disparos. Um caso, a priori de surto psicótico, protagonizou, a bem da verdade, mais um ataque machista.
A análise de uma carta redigida pelo Autor do crime envolve termos como “vadia da penha” e, ademais, no material publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, Araújo sustenta um discurso de ódio repleto de misoginia, em que trata a ex-mulher e todas as mulheres da família por “vadias”, vejamos: “Eu tentei pegar a vadia no almoço do Natal e no dia da minha visita, assim pegaria o máximo de vadias da família, mas como não tenho prática não consegui”.
Segundo Roger Raupp Rios e Luiz Gustavo Oliveira de Souza, “o desafio da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é consolidar o paradigma dos Direitos Humanos diante de uma sociedade que culturalmente a eles resiste, impondo barreiras e resistências incrustadas em culturas machistas e homofóbicas.
No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132 o STF reconheceu de forma unânime a
proteção jurídica das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, admitindo repercussão e relevância constitucional para os temas de identidade de gênero.
Há no ordenamento jurídico brasileiro proibição de discriminação por motivo de sexo. Em tratados internacionais ratificados pelo Brasil – a exemplo da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – são claras as referências a expressões como gênero e orientação sexual.
Com fulcro no princípio da proibição da proteção deficiente, bem como na interpretação sistemática constitucional e convencional do ordenamento jurídico, a Corte Constitucional ampliou o alcance da expressão “sexo”, constante em diversos dispositivos da Constituição Federal e de Constituições Estaduais, para abranger o sexo biológico (questão física) a identidade de gênero (masculino ou feminino) e a orientação sexual (desejo sexual dirigido para pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto.
Problema maior reside, conforme lecionam Luiza Heilborne e Elizabeth Zambrano, no fato de que “estes três elementos – sexo, gênero e orientação – são pensados, em nossa cultura, como estando sempre combinados de uma mesma maneira – homem masculino heterossexual ou mulher feminina heterossexual. É possível, entretanto, inúmeras combinações entre eles”.
Na apreciação da ADPF nº 132 a decisão do STF foi unânime no sentido de conferir ao artigo 1723 do Código Civil de 2002 uma hermenêutica conforme a Constituição Federal de 1988, afastando qualquer interpretação que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, como família.
Em fins conclusivos, vale duas ressalvas, uma jurídica e outra médica, ambas na mesma direção: homofobia e machismo são atos de intolerância incompatíveis com a racionalidade humana e, portanto, atos intoleráveis em qualquer realidade social, quanto mais na atual.
A primeira remete ao trecho do voto do Ministro Ayres Britto (relator da ADPF nº 132), ao afirmar que “interpretando de forma não reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar nosso Magno Texto
a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico.”
A segunda, conforme mencionado, introduz termos médicos ao debate. Afinal, conforme brilhantemente aduz o Dr. Drauzio Varella, “que diferença faz para você, para sua vida pessoal, se o seu vizinho dorme com outro homem? Se a sua vizinha é apaixonada pela colega de escritório? Que diferença faz para você? Se faz diferença, procure um psiquiatra. Você não está legal!”
Hugo Viol Faria
Graduado em Direito pela Faculdade Metodista Granbery – FMG. Pós-graduando em Ciências Criminais pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva-Estácio. Advogado. Gerente de Apoio Jurídico da Advocacia Geral do Município de Barbacena/MG. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil Subseção Barbacena/MG. Professor de Direitos Humanos e Prática Penal.