Consta ao teor do artigo 58 do Decreto Lei 3.688/41 – Lei de Contravenções Penais, que “explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato relativo à sua realização ou exploração” sujeita o infrator à pena de prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa.
A infração penal em tela gera inúmeros questionamentos quando lida a luz dos princípios inerentes à missão essencial do Direito Penal. Afinal de contas, por força do princípio da mínima intervenção, da fragmentariedade, da adequação social e da insignificância, a exploração de Jogo do Bicho ainda é contravenção penal? Ou melhor, o fato de a prática ser comum na República Federativa do Brasil não faria com que o costume revogasse o artigo 58 da Lei 3.688/41?
Na busca pelas respostas, indispensável lembrar as diretrizes traçadas por cada princípio supramencionado para, ao final, avaliar o posicionamento dominante quanto ao tema.
Por logo, dentre as ações coercivas estatais, visualiza-se a competência Penal, nos termos do princípio da mínima intervenção, àquela destinada a tratar das lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes. Importante ainda destacar que o Direito Penal só deve ser considerado quando outro ramo do Direito não for suficiente para garantir proteção ao bem jurídico tutelado, dado seu caráter fragmentário.
No mesmo sentido, a teoria adequação social, na lição de Luiz Regis Prado, “significa que apesar de uma conduta se subsumir ao modelo legal não será considerada típica se for socialmente adequada ou reconhecida, isto é, se estiver de acordo com a ordem social da vida historicamente condicionada”.
Noutro giro, o princípio da insignificância (“crime de bagatela”) impõe aos operadores do direito os ditames exatos do princípio da mínima intervenção. Por força deste princípio, nos casos em que – apesar da adequação formal entre o fato previsto na lei como crime e a conduta do agente – a lesão ao bem jurídico tutelado for ínfima, haverá atipicidade material da conduta e, por silogismo, não se estará diante de um crime.
O Supremo Tribunal Federal entende, nos termos do glossário jurídico disponibilizado no site oficial da corte, que a aplicação concreta do princípio da insignificância está condicionada ao preenchimento, cumulativo, de quatro requisitos, vejamos: ausência de periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; mínima ofensividade da conduta do agente; inexpressividade da lesão ao bem jurídico tutelado.
Dito posto, teria o costume revogado o tipo penal constante ao teor artigo 58 da Lei de Contravenções Penais (jogo do bicho)?
A tendência, a partir dos princípios explicitados, é pela interpretação de que a exploração de loteria denominada jogo do bicho não possui qualquer relevância jurídica para o Direito Penal e, assim sendo, deve ser considerada como fato atípico.
Todavia, deve-se conhecer, ainda, três correntes que dissertam quanto a possibilidade, ou não, de revogação de dispositivo legal pelo costume, nos termos do artigo 4º do Decreto Lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – antiga Lei de Introdução ao Código Civil).
A primeira corrente doutrinária a se posicionar quanto ao tema, fundada na relevância dos costumes como fonte legítima de Direito no âmbito internacional, admite a revogação de disposição legal pelo costume, por força do interesse social envolvido.
Por outro lado, a segunda corrente não admite a exclusão de norma do ordenamento jurídico em razão do costume, mas entende que o julgador não deva aplicar a norma, pois a conduta seria materialmente atípica.
Noutro giro, a terceira e última corrente pondera quanto a indispensabilidade de respeito ao princípio da legalidade, de forma que a única forma de revogar a Lei é pela promulgação de nova Lei, não havendo que se falar em costume abolicionista.
Dito posto, por força da prevalência da terceira corrente doutrinária estudada, a conclusão merecida é que a exploração ou realização de loteria denominada jogo do bicho continua sendo infração penal (Lei de Contravenções Penais) e poderá sujeitar o infrator pena de prisão simples pelo período de quatro meses a um ano.
Por fim, deve-se esclarecer que raramente o acusado pela exploração de jogo do bicho é denunciado apenas pela Contravenção Penal do Artigo 58 da Lei 3.688/41, sendo comum o concurso, formal ou material, pela prática de crimes de corrupção ativa, lavagem de dinheiro e organização criminosa (Lei 12.850/13), o que aumenta significativamente os limites de pena em eventual condenação.
REFERÊNCIAS:
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro – Parte geral, p.83.
http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=P&id=491
Hugo Viol Faria
OAB/MG 169.332
Formação: Graduado em Direito pela Faculdade Metodista Granbery – FMG. Pós-graduando em Ciências Criminais pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva-Estácio. Advogado. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil subseção Barbacena/MG. Professor de Direitos Humanos